quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O Princípio de Salieri


Embora haja muita literatura sobre a rivalidade entre Antonio Salieri e Mozart, existem poucas provas de que essa rivalidade resultou em algo mais do que as rusgas habituais para ganhar nomeações da corte na época. Salieri nasceu 6 anos antes de Mozart (1750). Ele foi nomeado diretor da ópera italiana pela corte de Habsburg, cargo que ocupou de 1774 a 1792, e dominou a ópera italiana em Viena. A partir de 1788 a 1824, ele também foi responsável pela música na capela imperial e da escola anexa, como Kapellmeister.

Nós presumimos que a chegada e ascensão de Mozart na cena musical vienense deve ter criado algum impacto na vida de Salieri e perturbado sua influência. No entanto, ele permaneceu um dos mais procurados professores e podemos citar Beethoven, Schubert e Liszt entre seus alunos.

A música de Salieri desapareceu lentamente do repertório no século XIX e foi raramente ouvida depois até o reaparecimento de seu nome em uma peça de teatro dramática e altamente ficcional de Peter Schaffer, de 1979, chamada "Amadeus". Esta peça alcançou sua maior popularidade com a versão muito elogiada do filme do mesmo nome, em 1984, dirigido por Milos Forman. Na peça, Salieri é caracterizado por seu conflito interno da grande admiração que tinha pelas obras de Mozart com a sensação penível de que as suas obras eram bastante medíocres quando comparadas com as do jovem gênio. "Amadeus" significa "amor de Deus", ou "amor por Deus". Isto leva a um ciúme doentio, que culmina com Salieri renunciando a Deus por que abençoou o seu ídolo para a posteridade, enquanto que o havia condenado ao esquecimento. Salieri, em revolta, decide assassinar Mozart (totalmente fictício), assim trucando o julgamento de Deus, para alcançar a notoriedade através da aversão universal. "Como eu assassinei Mozart", diz ele, "com arsênico - por inveja!". Sua vingança é perfeita: se as pessoas vão lembrar e celebrar Mozart pelas suas obras-primas, irão também lembrar-se dele, que acabou com a vida de Mozart tão cedo e de uma maneira tão vil.

A peça é baseada em datas e eventos fatuais, mas é totalmente fictícia no tratamento dos caracteres. O que é brilhante no escrito de Schaffer é a definição dos dois personagens principais: um é um gênio que facilmente produz obra-prima após obra-prima, enquanto que o outro é um medíocre habilidoso, que só consegue divertir os mundanos. Salieri, terminando internado em uma instituição mental, anuncia-se como "o santo padroeiro da Mediocridade".

Eu já li muitas biografias de Mozart, incluindo o volume completo e maravilhoso de Jean & Brigitte Massin, e apreciei a leitura da transcrição de suas inúmeras cartas a seu pai, Leopold. Depois de ver o excelente filme "Amadeus", eu comprei e li o livro da peça original de Schaffer. E então, cheguei à revelação do Princípio de Salieri que governa nossa vida intelectual. De acordo com o Princípio de Salieri, o mundo deve ser dividido em três grandes grupos de intelectuais: os Gênios, os Salieris e as Massas. Observe que estes grupos se aplicam a pessoas que dedicam seus cérebros a algum tipo de atividade ou prazer intelectual. Lamento dizer que isso exclui 95% da humanidade. Assim, estamos nos referindo aqui aos 5% (350 milhões) que restam da população mundial de 7 bilhões de pessoas no momento da redação deste artigo.

Os Gênios são fáceis de aceitar e compreender. Eles contam por uma parte infinitesimal da população intelectual, algo como 0,2%. Eles são excelentes no que fazem, de uma maneira que é inigualável, requintada e exclusiva. Um Gênio geralmente não tem que fazer nenhum esforço para se tornar um gênio, ele nasce um. Mozart era um Gênio. Beethoven, Bach, Cristo, Budha e Einstein também. Vermeer e Rembrandt, Shakespeare e Stevenson, Barrett Browning e Allan Poe, Espinosa e Voltaire, Cartier-Bresson e Salgado, Garnier e Niemeyer, da Vinci e Michelangelo, Bernstein e Boulez, Glenn Gould e Uchida, Schwarzkopf e Fischer-Dieskau, todos estes são exemplos de Gênios em suas próprias áreas de especialização. Ser um Gênio não é um passaporte para a felicidade, como as vidas de muitos Gênios podem comprovar. Mas a felicidade não é o principal objetivo de uma vida de Gênio; a realização, sim. Um Gênio nasce para dar ao mundo o benefício de sua aptidão. Ele é o orgulho da raça humana e vai deixar sua marca indestrutível para as gerações futuras.

O grupo das Massas também é muito fácil para entender, embora seja mais difícil de aceitar. Ele inclui a maior parte da população, algo como 90%. Embora os membros deste grupo não sejam intelectualmente dotados de gênio, eles também não se preocupam muito com este fato. Muitos deles são intelectualmente ativos, respeitando e aproveitando as obras intelectuais dos outros. O objetivo principal em suas vidas é a busca de poder, riqueza e felicidade, que pode incluir o amor ocasional pela ciência e as artes em geral. As Massas são divididas em subgrupos de consumidores e produtores. Há consumidores de beleza, ciências, artes, e até mesmo matérias espirituais. Há também produtores nas Massas, mas eles geralmente fabricam artefatos, desenvolvem ideias ou realizam projetos que são inventados ou concebidos por Gênios ou Salieris. A principal vantagem de pertencer às Massas é o fato de que eles conseguem gozar a vida mais do que qualquer um dos outros grupos, já que seus objetivos principais são muito mais mundanos.

Finalmente, introduzimos os Salieris, o restante da população intelectual, com um residual de 9,8%. O nome Salieri é a definição mais adequada para esses membros da raça humana: eles são capazes de produzir belos trabalhos que são elogiados pelas Massas. No entanto, eles não possuem a centelha divina que os tornam únicos e incomparáveis. Entre os Gênios, eles são considerados medíocres. Entre as Massas, eles são prestadores convenientes ​​sem nenhum senso de praticidade. Mesmo aplicando a sua capacidade máxima, eles são incapazes de ascender à categoria mais elevada. E quando eles tentam ser práticos, é muitas vezes desastroso. Para a maioria deles, o objetivo principal é, naturalmente, tornar-se um Gênio. Inútil dizer que eles nunca atingirão este objetivo, salvo raras exceções. De uma maneira geral, suas vidas são preenchidas com frustrações e fracassos. A verdade é que o Salieri não é bom bastante para se tornar um Gênio, e não mundano suficiente para ser um membro das Massas. Ele está muitas vezes insatisfeito com esta situação desconfortável e incapaz de desfrutar a vida tanto quanto qualquer membro das Massas. É muitas vezes uma vida triste, mesmo quando são bem-sucedidos no que fazem, já que sua aspiração principal nunca é atingida.

Em algumas ocasiões tenho sido exageradamente chamado de gênio por parentes e amigos próximos, ao se referirem a certas obras de minha produção em diferentes campos. Apesar de tamanho elogio, estou consciente de que devo ter sido o que eu chamo de "Salieri multifacetado" durante a maior parte de minha vida. Programação (software), fotografia, música, literatura, desenho, eu posso fazer tudo isso de forma competente e, algumas vezes, até acima da média. Uma amiga minha escreveu-me uma vez: "você é tão bom em tantos campos totalmente diferentes!". Pode ser verdade em alguns casos, mas eu nunca vou alcançar o nível de excelência que irá elevar-me ao grupo dos Gênios. Seria já difícil, senão impossível, para mim ser um gênio em apenas um desses campos, que falar então em todos eles ao mesmo tempo. Eu posso escolher viver miseravelmente lamentando esse fato, ou poderia reduzir as minhas expectativas e ser feliz com o que eu sou capaz de fazer.

Tudo isso considerado, eu tenho uma boa notícia para os meus irmãos Salieris; este é o meu conselho final: não seja tão mal-humorado e miserável como o Salieri na peça de Schaffer ou no filme de Forman. Se estamos felizes com o trabalho que fazemos e trazemos alegria e felicidade para as pessoas ao nosso redor, isso é mais do que suficiente para justificar a nossa existência! Mesmo que o legado de Salieri seja minúsculo comparado ao de Mozart, ele tinha uma vida boa, ao contrário da ficção na peça e no filme, trazendo alegria para seus contemporâneos. Devemos ficar contentes e agradecidos com todos aqueles que são intelectualmente ativos e sensíveis o suficiente para apreciar o nosso modesto trabalho e nos presentear com suas amáveis ​​palavras de louvor!

Assim, como qualquer outra pessoa, eu não me importaria de ser um Mozart, mas na impossibilidade disso, eu permaneço orgulhoso de ser um Salieri. No entanto, estou determinado em ignorar a ambição principal de um Salieri, pois pretendo concentrar-me em ser feliz fazendo o que gosto, da melhor maneira que eu puder...

2 comentários:

  1. Mesmo dentro de nossa mediocridade aparente, podemos ser o GENIO maior de outro.

    Ser alguem eh facil, dificil eh ser a gente mesmo.

    Acertada consideracao!

    contudo mais feliz eu fico, qdo o vejo se valorizando e chegando a conclusao q fazer outros felizes, eh arte... e tbm ver nisso GENIALIDADE.
    Por muitas vezes vi vc GENIAL, no topo da piramide. Sem entrar no merito, vc eh IMPORTANTE pra nos todos. Eh isso !

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    1. Fazer outros felizes não é bem uma arte, é um dom e uma vontade que não precisa da arte para ser realizado.
      Ser um Salieri não deve resultar necessariamente numa maldição, como no caso do Salieri em "Amadeus". O importante, eu acho, é aceitar a condição e tirar o melhor partido dela, sendo modesto e realista. Se o nosso desempenho pode trazer felicidade para nós mesmos e aos outros, porque o desespêro de não poder atingir a perfeição?

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