A maioria de meus amigos e família no Brasil têm a ideia de que eu detesto o meus país natal sob todas as formas. Isso não é verdade. Como bom “carioca”, eu amei a minha cidade natal enquanto vivi no Brasil. Nascido em 1944, parti em 1967 para não mais regressar. Destes 23 anos guardo muito boas recordações e quero acabar, de uma vez por todas, com esta ideia preconcebida que me é atribuida.
O Rio de Janeiro, visto de cima, a bordo de uma aeronave, por exemplo, é talvez a mais bela cidade que existe. As baías de contornos graciosos, as montanhas com a vegetação luxuriante da Mata Atlântica, as ilhas, o mar azul e as praias de areia fina e branca, o Pão de Açúcar, o Corcovado com o Cristo de braços abertos como para dar as boas-vindas aos visitantes, tudo isso é esplendoroso e surpreendente. Uma vez, vinda do Canadá, onde habitávamos na ocasião, minha esposa relatou que ao sobrevoar o Rio, todos os passageiros da aeronave bateram palmas, emocionados.
Esta beleza incomparável deu origem ao apelido bem merecido de "Cidade Maravilhosa". O carioca, brincalhão como ninguém, conta numa anedota que Deus passou 6 dias para criar o Rio de Janeiro. Um anjo, confuso em ver o Senhor tão ocupado num só lugar e com somente um dia restante para acabar a criação do mundo, perguntou respeitosamente: "Senhor, não é injusto passar tanto tempo criando este lugar maravilhoso, enquanto que ainda existe o resto do mundo para acabar e povoar?". Deus respondeu calmamente ao anjo: "Não te preocupes, meu filho. Verás depois, para compensar, que tipo de gente eu vou colocar neste lugar de sonho...". De uma certa maneira, esta anedota representa o que eu sempre senti a respeito do lugar onde nasci: se amei a cidade, tive - e ainda tenho - muitas restrições ao caráter e hábitos de seus moradores.
Quando me lembro nostalgicamente do Rio da minha juventude nos anos sessenta, eu sinto prazer e até mesmo saudades: as grandes avenidas do centro, os prédios históricos majestosos, as belas praças arborizadas; os restaurantes onde comi pratos que até hoje me lembro com regalo; as igrejas deslumbrantes, como o Mosteiro de S. Bento e o Outeiro da Glória, onde me casei; os cinemas da Cinelândia, que frequentava várias vezes todas as semanas; as grandes livrarias, onde ficava horas a fio a folhear livros que muitas vezes nem podia comprar; a Associação de Canto Coral, onde aprendi a arte do canto, fiz grandes amigos e consegui ser promovido ao côro a cappella e cantar nas capitais européias; certas bancas de jornais, onde comprava, com o dinheirinho que eu conseguia economizar, as revistas americanas de histórias em quadrinhos; o belo e imponente Teatro Municipal, onde me iniciei à música clássica; os bares, sobretudo o conhecido Amarelinho, sempre cheios, onde batia papo com os amigos e encontrava os poetas da noite, bebendo chopinho gelado madrugada a fora e chegando em casa ao sol raiar. Lembro-me de sentir um pouco de vergonha, pois muitas vezes chegava na hora mesmo em que meu pai estava saindo para o trabalho. Mas nunca fui assaltado, nunca me senti em perigo. Foi uma vida feliz, gostosa e despreocupada.
Depois de casado, em 1966, mudei para Copacabana, onde pude gozar da beleza do mar, dos prazeres da praia e da temperatura mais amena, bem diferente do calor opressivo da zona norte, onde morava antes. Não, a verdadeira razão pela qual decidi emigrar um ano depois nada tem a ver com a minha cidade e o meu país natal. O que me fez partir foram os sonhos que povoavam a minha mente e que me impulsionavam rumo ao velho mundo, onde a cultura e a arte me esperavam de braços abertos. E nisso, eu havia tido a fortuna de encontrar uma companheira que partilhava os mesmos sonhos e expectativas.
Retornei ao Rio trinta e três anos depois, para jogar as cinzas de minha amada companheira nas águas do mar, no Posto 6 em Copacabana, como ela me havia pedido antes de morrer. Fiquei hospedado, com minha filha, num hotel na Avenida Atlântica. Pude visitar minha família, minhas queridas cunhadas e meu amigo de infância. A meu pedido, este amigo me fez percorrer de carro o bairro onde nasci e vivi a maior parte de minha vida no Rio: São Cristóvão. Foi um grande erro meu.
Uma boa amiga minha me disse uma vez que não devíamos retornar, depois de passados muitos anos, aos lugares que amávamos. Ela disse que, na maioria das vezes, a realidade não correspondia mais com a lembrança, e gerava o sofrimento de uma decepção profunda. Minha amiga tinha toda a razão: o Rio que eu conheci e amei, não correspondeu ao Rio que eu encontrei. Se eu quiser resumir em duas palavras o que vi e senti, eu diria: feiura e pobreza. A cidade - agora pobre, feia, hostil e decadente - com a qual eu me deparei, não tinha mais nada em comum com a “minha” cidade. Retornei ainda algumas poucas vezes, mas somente para visitar os entes queridos.
Lembro-me que em uma das vezes fomos ao centro para almoçar na famosa Confeitaria Colombo, onde meu pai havia trabalhado muitos anos. Minha sobrinha, que nos levou até lá, estacionou o carro num estacionamento nas redondezas. A caminhada do estacionamento à Colombo foi uma corrida frenética, como se a qualquer momento pudéssemos ser assaltados. Não tive tempo nem de verificar se eu ainda reconhecia os prédios daquele local tão familiar do passado. Lá dentro, uma surpresa: a Colombo se apresentou para mim da mesma maneira resplandecente de outrora; e a comida, absolutamente do outro mundo. Mas, na saída, a mesma correria de volta ao estacionamento.
O jantar magnífico que me foi oferecido pelo meu amigo de infância, a mesma coisa: de carro da casa dele para um estacionamento subterrâneo de onde acessamos diretamente a entrada para o restaurante. Nada de andar pelas ruas, todos preocupados com a minha segurança.
Esta impressão triste e ruim que experimentei durante algumas visitas, eu quero esquecer. Eu prefiro ficar com as minhas lembranças de uma “cidade maravilhosa” onde nasci, cresci e passei a minha juventude, onde vaguei pelas ruas sem temor, onde construi meus sonhos e ambições para o futuro, onde conheci o meu primeiro amor.
Não detesto a minha cidade nem o meu país natal. Simplesmente não consigo me ver voltando a residir num lugar que nada mais tem para me oferecer. A mesma razão pela qual eu parti em 1967, é agora ainda mais válida. Se antes eu fui movido por um sonho de mergulhar na cultura e na arte, porque iria eu, justamente no final de minha vida, abandonar tudo aquilo com que sonhei?
Como Livingstone, eu digo: "Eu estou preparado para ir não importa aonde, contanto que seja para frente". Perdoem-me, mas no meu caso, sobretudo, não faz sentido voltar atrás...
Como Livingstone, eu digo: "Eu estou preparado para ir não importa aonde, contanto que seja para frente". Perdoem-me, mas no meu caso, sobretudo, não faz sentido voltar atrás...